Crônicas da vida urbana
Por Crônicas da vida urbana -
Impulso consumista
A cena não é, de jeito nenhum, prerrogativa dos tempos neo-liberais: já esteve em comédias, sátiras e deboches de todo tipo – e ninguém aprendeu a lição.
Há uma multidão diante de uma porta, estática. Mas quando as ditas portas são abertas, é o estouro da boiada, se é que os bovinos conseguem esse padrão de selvageria: as pessoas se jogam, alucinadas, para dentro do estabelecimento, gritando, se acotovelando, se empurrando. Grito de guerra, “Comprar! Comprar! Comprar!”
É deplorável que isso ainda aconteça, é de dar vergonha de pertencer à raça humana, única capaz dessa insanidade.
Nos tempos do tão famigerado quanto inútil Plano Cruzado, participei dessas cenas, mas tinha um bom motivo: conseguir racionadas latas de leite em pó para meu filho.
Se as cenas acima fossem para adquirir gêneros alimentícios, estariam plenamente justificadas – mas certamente são para a superfluosidades das quais se podem perfeitamente prescindir, ou adiar sua necessidade.
Prefiro a cena relatada por um amigo: uma adega em Montreal, ia fechar as portas, sei lá porque, mas era altamente conceituada. Então o dono colocou o estoque – que consistia em vinhos caros e refinados – em oferta. Bom, os canadenses passaram a noite na fila, naquelas temperaturas glaciais do inverno deles – para chegar ao estoque. Mas, civilizadamente: fila, por lá, já é coisa difícil, e eles fizeram. Devem ter procurado tecnologia brasileira, onde pra qualquer bobagem tem fila. Parece que a loja zerou seu estoque, mas sem a cafonalia da gritaria, empurra-empurra de porta de estádio de futebol.
Se considerarmos a necessidade absoluta da quarentena neste momento, do isolamento social, que não é uma questão política, mas sanitária – fica mais vergonhoso ainda. Se a nível internacional já estamos passando vergonha, com a irresponsabilidade de deixar os políticos administrarem essa crise, as cenas de “não aguento mais, me deixem fazer dívidas” acabam com a nossa já escassa credibilidade. Claro, para os políticos não faz muita diferença, esses saem por cima de qualquer jeito.
Mas a vergonha maior, é para nós mesmos: reflexo dessa imaturidade absurda do povo brasileiro, que emerge em cada eleição e nas situações onde seria mais necessário um comportamento civilizado. E, pior ainda, sabemos disso.
Temos 520 anos como país, talvez com outro tanto possamos aprender a nos comportar decentemente. Ou os vírus chineses acabam conosco antes.