Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a ver crianças descalças na rua. E, por estarem descalças, a gente se acostuma com a sujeira em seus rostos. Como estão sujas, nos acostumamos com suas roupas rotas e rasgadas. E porque não olhamos com atenção, não vemos a magreza de seus braços. E nos acostumamos a vê-las desse modo, vendendo balas nas sinaleiras e pedindo dinheiro. E aceitando como se fosse normal, nem reparamos em seus olhos tristes. E, à medida que nos acostumamos com essas imagens, começamos a achar normal crianças sem infância.
A gente se acostuma a ver pedintes nas ruas. E se acostuma com eles pedindo nas sinaleiras. E, pela agressividade de uns, julgamos todos iguais. E, por termos medo, não conseguimos distinguir o necessitado do malandro. E, vendo eles de longe, já se acostuma em fechar os vidros. E, fechando o vidro, se acostuma a fingir que eles não estão ali. Fingindo que eles não estão ali, achamos que o problema não existe. O problema não existindo, ele não precisa de uma solução.
A gente se acostuma a encontrar pessoas dormindo nas calçadas. E, dormindo nas ruas, achamos normal viver assim. E não nos preocupamos com o frio que passam nas noites de inverno. E nem pensamos no desconforto que sentem em não ter um abrigo ou um lugar para tomar um banho. E nos acostumamos a vê-los pelas ruas da cidade, andando em grupos. E, como andam em grupo, estão em maior número. E nos acostumamos a temer uma abordagem. E, por ter medo, atravessamos a rua. E, atravessando a rua, simplesmente olhamos para o outro lado. Olhando para o outro lado, podemos esquecer do medo e das pessoas na rua.
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
Esse texto dedico a uma pessoa que, em sua vida, ajudou muitas outras, e que, com seu coração enorme, nunca se acostumou. D. Jenny Liberato
Morar em apartamento de fundos e não ter vista que não sejam as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a ligar mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, se esquece do sol, se esquece do ar, se esquece da amplidão.
A gente se acostuma a acordar sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não aceitando as negociações de paz, aceita a ler todo dia sobre a guerra, os números, e sua longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir, no telefone: “Hoje não posso ir”. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que se deseja e de que se necessita. E a lutar para ganhar para ter como pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que, cada vez, pagará mais. E a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar nas ruas e a ver cartazes. A abrir as revistas e ler artigos. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição, às salas fechadas de ar condicionado e ao cheiro de cigarros. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam à luz natural. Às bactérias de água potável. À contaminação da água do mar. À morte lenta dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo de madrugada, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta por perto.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta lá.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua o resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se, no fim de semana, não há muito que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem muito sono atrasado.
A gente se acostuma a não falar na aspereza para preservar a pele. Se acostuma para evitar sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.