Paramos de contar os mortos.
Paramos de contar os mortos.
Seiscentos e vinte mil vidas findas e paramos de contar os mortos.
Parece uma qualidade intrínseca do ser humano: adaptar-se. Andando pelas ruas, comprando pão, selecionando as frutas no supermercado, nas filas dos bancos, na balada, nos bares à beira-mar, dá para ver a olho nu que a humanidade se adaptou até mesmo a uma pandemia.
Acostumamos às dores, às ausências, às faltas. Acostumamos e passamos a habitar a insensibilidade. Humanos fedem de longe: cagam, mijam, vomitam líquidos ou palavras, arrotam, peidam e anos após anos discursam sobre a ilusória ideia de que são a única espécie existente nas galáxias.
Humanos querem satisfazer desejos e não necessidades, como apregoam fazer. Mesmo que para isso botem os pés pelas mãos cotidianamente. O pão subiu em cifrões, a carne está inacessível aos pobres e os combustíveis beiram ao assalto.
Paramos de contar os mortos.
Paramos.
Na praia falta areia e sobra lixo. Muito lixo. No bar tem cerveja gelada e fila. A música sai de caixas de som particularizadas em rodas de amigos, coloniza ouvidos alheios com melodias baratas. Tiramos as máscaras e o ano começa com promessa de dias de sol.
Paramos de contar os mortos.
Morreram pequenas memórias dos que tinham entes queridos, cachorro, gato, jardins, livros ou músicas que embalaram amores. Tinham sonhos e costumavam se deliciar com algum prato especial.
Mas paramos. Paramos de contar os mortos para aproveitar o instante efêmero do sol.
Paramos mesmo foi de reafirmar nossa humanidade.
Paramos de contar os mortos.
Enquanto isso, no país das maravilhas, o inominável pescou tranquilamente nas águas azuis dos mares catarinenses (que por sinal teve registrado até hoje mais de 20 mil mortos). A Bahia clama por ajuda, o país vizinho oferece ajuda humanitária que é oficialmente negada e o caos rege a orquestra desafinada que continua vociferando bobagens.
E, pasmem, paramos de contar os mortos.
Sou daqueles que desejam que 2022 venha com uma virada histórica para que essa escória vá para a lata de lixo.
P.S.: logo, logo virá um pato amarelo vociferar contra esse cronista e chamar esse veículo de comunicação de jornaleco. Pato bom não sabe falar, só grasna. Vai, pato, grasna.