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À beira da guerra por procuração


Da única vez que fui à Caracas, há 40 anos, ficou-me a imagem de uma cidade opulenta, não muito grande, no centro de um anfiteatro de casebres apinhados como favos de mel – semelhança de que, na cidadela de Canudos, proveio o nome “favela”. Algo como um Rio de Janeiro sem diálogos, temendo o dia de o morro descer, e não ser carnaval.

Desde 1958, a Venezuela era governada por uma democracia de fachada em que se alternavam partidos articulados com interesses norte-americanos. Encenavam-se batalhas políticas irrelevantes, embora ferozes: seria assim por quatro décadas até a eleição de Hugo Chávez Frias, em 1998.

Pouco antes disso, conversei, em duas oportunidades, com jovens militares venezuelanos e me surpreendeu, não só o nível de informação sobre História da América, mas o quanto se preocupavam com a maldição do petróleo, riqueza imensa (as maiores reservas do mundo) que levou a elite do país a desprezar outras atividades da economia e importar praticamente tudo.

Fora o petróleo, comentavam, só distribuição e vendas a varejo.

Se o regime de então lembra a República Velha brasileira – o café com leite em que se alternavam no poder as oligarquias de São Paulo e Minas Gerais, esvaziadas pelo declínio do surto de industrialização ao tempo da Primeira Guerra Mundial – a campanha militar e política de Hugo Chávez parece o movimento dos tenentes que conduziu à revolução de 1930, também com projeto social relevante.

A ideologia revolucionária do chavismo reporta-se ao pensamento de Simón Bolívar (1782-1830), o libertador da Grã Colômbia: extensão da “democracia dos senhores de escravos” da Constituição dos Estados Unidos, acrescida dos ideais humanísticos correntes no período pós-napoleônico – o socialismo utópico ou religioso. Um apanhado dessas ideias foi posto em livro por José Ignácio de Abreu e Lima (1784-1869), general das tropas bolivarianas (O Socialismo, 1848). Ao contrário do marxismo que lhe é posterior e propõe a luta de classes como motor da História, o núcleo é a solidariedade do povo em torno da Nação: esse o princípio que comoveu as massas indígenas e mestiças que ocupam a base da pirâmide social venezuelana.

Chávez não teve o êxito de seu contemporâneo Lula da Silva no combate à fome: a dependência de importações de alimentos contribui ainda hoje para tornar a Venezuela vulnerável. No entanto, o investimento na mobilização política e no equipamento das forças armadas é o que mantém vivo o regime, principalmente após a tentativa de golpe de 2002. Os pontos fortes da política social bolivariana são a educação pública e o acesso à moradia.

Supondo a fragilidade política de Maduro, sucessor de Chávez eleito com pequena diferença de votos em 2013, os opositores elegeram maioria na Assembleia Nacional e tentaram, por cinco vezes, apeá-lo do poder. No entanto, não se tem base factual para culpar o presidente, reeleito em 2018, pelas dificuldades impostas ao povo venezuelano: o país enfrenta uma guerra híbrida com que os Estados Unidos pretendem manter na área minguante de sua influência a comercialização do petróleo. As campanhas movidas pela mídia comercial latino-americana estão engajadas nisso: não se pode confiar no que nela se publica sobre a Venezuela.

O cerco financeiro debilita o país. Com os presidentes Duque e Bolsonaro, caberia a Colômbia e Brasil completar a tarefa em uma guerra por procuração. No entanto, o embate é, por enquanto, apenas diplomático e midiático. As forças armadas brasileiras não parecem dispostas a invadir o país vizinho e combater suas tropas leais ao governo constitucional. São militares que se conhecem de longa data.

O que Exército, Marinha e Aeronáutica têm feito no Brasil é receber com a hospitalidade possível os refugiados da Venezuela. A Operação Acolhida revela o que o Brasil é, nas aspirações de seu povo e na verdade de sua história: abriga ou abrigou dezenas de milhares de pessoas, alimenta, fornece documentação e assistência médica a número ainda maior, distribui imigrantes pelo território nacional – seis mil até semana passada – e promove a rejeição à xenofobia.

Não há contradição objetiva entre a intenção bélica e a ação generosa, mas os ânimos são radicalmente distintos. Que o espírito do Barão de Rio Branco, expulso de sua Casa, e a alma generosa de Cândido Rondon inspirem, pois, nossos soldados.

Guerra é a pior coisa que pode acontecer a um povo.


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