Em geral
Por Em geral -
Um país colorido virado em preto e branco
“A virgem dos lábios de mel, cabelos mais negros do que a asa da graúna e mais longos do que o talhe da palmeira. O favo do jati não era doce como seu sorriso” (José de Alencar) “Queria ver se essa gente também sente/ tanto amor como eu senti /quando te vi”. Caxangá.” (Cabocla de Caxangá, Catulo da Paixão Cearense) “Mulata, cor de canela / salve, salve, salve, salve ela!” (Braguinha) Considerando as porcentagens das etnias formadoras, acumulamos, ao longo de gerações, coleção inédita de indivíduos que combinam traços físicos e memórias atávicas. Por que escondê-la na dicotomia branco e preto? Apagar a riqueza de nossas cores, misturadas em camas, redes, relva, areia e pisador? A explicação provém da História e de sua fraude, porque toda nação se representa menos pelo que é do que pelo que quer ser. O Brasil de 1500 era habitado por milhões de índios; Portugal tinha população ínfima considerando a extensão das terras que descobria, da América ao Extremo Oriente. Os comerciantes portugueses (também franceses, holandeses) eram poucos; por mais de dois séculos, falou-se no país a Língua Geral, consolidação de raízes do tupi e do guarani numa gramática tecida pelos padres jesuítas - da mesma ordem do atual papa Francisco. A população urbana se consolidaria dominantemente mestiça, mistura de brancos, índios e negros - em cada categoria dessas, de etnias diferentes. O ingresso de trabalhadores africanos trazidos como escravos acelerou-se com os ciclos econômicos da cana-de-açúcar e da mineração do ouro e diamantes. A vinda de colonos - europeus, depois asiáticos - começou mais tarde, no final do século XVIII, e só atingiria ritmo intenso na segunda metade do século XIX e no século XX, por efeito da recessão vitoriana, das guerras e do fascismo. Dentre esses estão os que se arvoram, agora, donos do pedaço. O fato de a imigração recente ter-se destinado ao sul do país, de clima próximo da Europa, em colônias de baixa integração com o entorno e miscigenação ainda escassa, explica em parte a embrionária divisão geográfica atual do Brasil em termos de valores e ideologia. O branqueamento foi uma campanha publicitária com discurso de aparência científica que serviu de suporte para a diáspora europeia. Com a proclamação da República, o movimento civilista e a reação conservadora à abolição da escravatura, tornou-se doutrina oficial das elites lideradas quase sempre pela oligarquia paulista; esse traço marca a jornalismo e o discurso acadêmico dominantes nas três primeiras décadas do século XX. O supremacismo branco começou a refluir com o trabalhismo de Getúlio Vargas, o indigenismo de Cândido Rondon e Villa Lobos, a descoberta da riqueza da música e da cultura afro-brasileira. Revigorou-se aos poucos, após a Segunda Guerra Mundial, graças à hegemonia norte-americana. Os Estados Unidos, ao proclamar a independência, no século XVIII, ocupavam estreita faixa de terra junto ao Atlântico. A classe dominante constituía-se de ricos senhores de propriedades agrícolas: nas proclamações liberais de cidadania, inspiradas na Revolução Francesa, não incluíram seus escravos, nem os índios que ocupavam as terras do Continente, a serem dizimados em ações militares entremeadas por falsos acordos de paz, manobra tão admirada por Jair Bolsonaro. O custo foi algo entre seis e doze milhões de mortos. É por isso que não há, no país dos Cheyenes e Apaches, um “problema indígena” e “mulatto” é nome feio. Nos Estados Unidos, há, claro, mestiçagem, mas a hipocrisia manda que se esconda: como prevalece o apartheid nutrido com fervor religioso, quem não é branco, é preto - salvo alguém especial, como Meghan, duquesa de Sussex, que se confessa “mixed woman”. No final do século XIX, no Brasil, o maior escritor, Machado de Assis, o maior engenheiro, André Rebouças, poetas como simbolista Cruz e Souza, o advogado Luiz Gama, parte da nobreza e jornalistas proeminentes descendiam de negros ou indígenas. Só quase um século depois, na década de 1960, os norte-americanos de ascendência africana alcançaram a plena cidadania legal. No entanto, poder é poder - e a propaganda sua melhor arma. À custa de antropologia interesseira e estímulo ao confronto, o país do convívio de etnias tornou-se uma terra caricata em que as criaturas dos mais variados perfis interétnicos têm de se encaixar entre os “brancos” ou entre os “negros”. Trata-se de disfarce para a luta de classes, que nela se esconde e, ao mesmo tempo, se revela.