Kelly Martarello
"A única alíquota que está específica é de medicamento, transporte, gás. Não há nada definido para o comércio internacional”
Advogada e vice-presidente de Assuntos Tributários da Associação Empresarial de Itajaí
Redação DIARINHO [editores@diarinho.com.br]
A Câmara dos Deputados aprovou o texto-base da reforma tributária, a PEC 45/19, que prevê simplificação da cobrança de impostos, fundos para bancar créditos do ICMS até 2032, além de promover a unificação da legislação tributária. A aprovação foi por 382 votos a 118. Na quinta-feira, horas antes da votação, a jornalista Franciele Marcon entrevistou a advogada tributarista Kelly Gerbiany Martarello, que é vice-presidente de Assuntos Tributários da Associação Empresarial de Itajaí (ACII). Kelly concorda que o Brasil precisa facilitar a tributação. No entanto, ela faz ressalva sobre o fato de as alíquotas não estarem claras e nem terem sido discutidas por boa parte da classe empresarial. Kelly frisa que o fim dos benefícios fiscais, especialmente para Santa Catarina e a região de Itajaí, que é reconhecida como um polo de comércio exterior, poderá significar aumento de impostos e prejuízos ao setor. As imagens são de Fabrício Pitella. A entrevista completa, em áudio e vídeo, você confere no portal DIARINHO.net e nas nossas redes sociais.
DIARINHO - O setor produtivo de Santa Catarina tem feito vários alertas sobre a Reforma Tributária no Congresso. O que o setor teme?
Kelly Martarello - O principal ponto de preocupação é porque é uma mudança muito profunda em todo o sistema tributário nacional, que foi instituído há mais de 30 anos. Não houve discussão suficiente com todos os setores da economia. Aqui em Santa Catarina nós temos que ter uma preocupação maior, porque o setor que manda aqui na região é o setor de comércio internacional, e nós nunca fomos ouvidos para essa reforma. Nós tememos um aumento da carga tributária em torno de 40% a 50% para a área de serviços e de comércio. É um aumento muito significativo. Lembrando que esse aumento é só provisionado, porque as alíquotas ainda estão em branco. É uma espécie de cheque em branco que está na reforma.
DIARINHO - Essa é uma promessa de três décadas: mudar a forma de tributação no Brasil. A proposta não foi discutida o suficiente?
Kelly - Ela foi discutida com diversos setores da economia. Mas, em especial, com os estados do Sul ela foi muito pouco discutida. Em especial aqui com o nosso setor portuário. Nós não fomos ouvidos pelos representantes sobre a reforma no que diz respeito ao comércio internacional. Haverá a reforma do fim dos benefícios fiscais a partir de 2032, o que já aconteceria por conta da lei complementar, mas nós não temos nenhum fundo de desenvolvimento regional para beneficiar o sul do Brasil. O governo federal promete ao estado de Santa Catarina manter a arrecadação ao estado, mas os empresários não terão mais essa vantagem tributária de oferta de benefícios fiscais. Isso pode levar à migração de cargas e de muitas atividades para fora de Santa Catarina. É uma preocupação muito grande para nossa cidade. Eu diria que para Itajaí e para todas as cidades portuárias, como São Francisco do Sul, Itapoá, Imbituba. Todas as cidades portuárias vão sofrer muito, porque em torno de 60% a 80% da nossa carga só faz uma passagem por Santa Catarina. Ela é destinada a outros estados. Há uma tendência que, após a finalização dos benefícios fiscais, em 2032, essa carga volte para os estados de origem.
Na prática nós vamos trocar cinco tributos por três tributos e com uma possibilidade de uma alíquota em branco”
DIARINHO - Quais as vantagens e desvantagens de unificar IPI, PIS e Cofins (federais), ICMS (estadual) e ISS (municipal)?
Kelly - O sistema tributário do Brasil é um dos mais complexos do mundo. O Brasil tem uma carga tributária elevada, não só muitos impostos, mas como também a complexidade da escrituração contábil. O objetivo da reforma é simplificar a tributação. A grande problemática são de fato as alíquotas que vão ser discutidas, porque hoje a gente vai dar um cheque em branco para os nossos senadores, a partir do momento que não tem uma discussão preliminar sobre a questão das alíquotas. Ou seja, eu vou mudar todo o sistema tributário de um país onde já tem uma previsibilidade de carga tributária para um novo sistema em que serão substituídos os tributos, especificamente, nós vamos ter o IVA Dual [Imposto sobre Valor Agregado]. Nós vamos ter a CBS que vai substituir o PIS, a Cofins e o IPI, e nós vamos ter o IBS que vai substituir o ICMS e o ISS. A CBS é de competência da União Federal. A CBS continua sendo de competência dos estados, mas é o que vai substituir os tributos estaduais. Na prática, nós vamos ter mais um outro imposto que é o IS. Na prática nós vamos trocar cinco tributos por três tributos e com uma possibilidade de uma alíquota em branco.
DIARINHO - A criação do Imposto Sobre Bens e Serviços (IBS), unificando ICMS e ISS, afetaria a cadeia portuária e logística catarinense. Sabe-se que o governo do estado atraiu alguns importadores mundiais com a oferta de redução de tributação. O fim dessa “guerra fiscal” entre os estados vai prejudicar Santa Catarina?
Kelly - Sim, o IBS irá substituir o nosso ICMS. Os benefícios fiscais de Santa Catarina que o governo fez foram todos com base no ICMS. A partir do momento que haja a extinção do ICMS, obviamente que haverá a extinção dos benefícios fiscais. E, por consequência, o fim dos atrativos dos portos catarinenses para as importações. Obviamente porque nós estamos um pouco longe do eixo Rio-São Paulo.
O objetivo da reforma é simplificar a tributação. A grande problemática é de fato as alíquotas que vão ser discutidas”
DIARINHO - O setor produtivo se queixa que o projeto da reforma tributária também dá um “cheque em branco” ao governo federal. Pode explicar melhor?
Kelly - Bom, hoje nós temos a alíquota, vou dar um exemplo. O ICMS, na importação, ele teria a alíquota entre 12 a 17% em Santa Catarina. Com o benefício fiscal a alíquota é de 1% mais 0,4% de fundos. Você tem uma carga tributária efetiva de 1,4% de ICMS incidente na operação de importação. Com a criação do novo IBS nós não temos a certeza de quanto vai ser essa alíquota. O que está se falando é em torno de 25% mais ou menos. Nós vamos ter só aí um aumento em torno de 23,5% na carga tributária. Não foi falado nada de uma alíquota específica para o comércio internacional. A única alíquota que está específica é a de medicamentos, transporte, gás etc. Não há nada definido para o comércio internacional. Com relação às alíquotas, sim, você pode ter um aumento de alíquota aqui, por exemplo, na cesta básica, em torno de 59,83%.
DIARINHO - Projeções de economistas anunciam que haverá redução nos preços de alimentos, por exemplo, para o consumidor final. Mas os supermercadistas dizem que a reforma tributária pode encarecer em até 60% a cadeia econômica e que isso refletirá nos preços. Qual análise a ACII faz desse impasse?
Kelly - O estudo é da Apras [Associação Paranaense de Supermercados]. Eles computam que, se vigorar a nova reforma tributária, você terá um aumento em torno de 60% da carga tributária na cesta básica. São estudos econômicos que já foram apresentados inclusive no Congresso Nacional. Nós estamos só reproduzindo o que já está em debate. Lembrando que a reforma tributária foi debatida desde março de 2023 internamente em alguns estados. Em especial nos estados que a gente chama “consumidores”, estados destinatários: São Paulo, Rio e outros. Santa Catarina não teve muita participação sobre a questão da reforma.
Hoje o sistema tributário do Brasil é um dos mais complexos do mundo”
DIARINHO - Há previsão de mais oneração de serviços como de manicure, barbeiros, médicos e profissionais de app?
Kelly - Acreditamos que sim na questão de serviços. Por exemplo, qual é hoje a alíquota aplicável para os serviços? Em torno de 15%. Você computa PIS, Cofins e ISS. Se você tiver uma alíquota do IBS em torno de 25%, você já tem um aumento de carga tributária de 10%. Mas lembrando que as alíquotas ainda não estão definidas. Isso é tudo uma previsão. Porque isso que é importante a população, nesse momento em que houver a discussão dessas emendas parlamentares, a população de fato estar por dentro de toda a complexidade e de quanto que isso vai mudar no dia a dia. Participar, cobrar dos seus representantes políticos e entender um pouco dessa discussão. Esse projeto de lei, a PEC 45, é inquestionavelmente o projeto que o Brasil precisa. Reforma tributária é uma necessidade para a produção. O objetivo da reforma sempre foi o da desoneração da produção e consumo e a oneração da renda. Porém, neste momento, a gente não tem uma certeza absoluta em razão dessa questão da alíquota. Esse é o projeto que está em votação. Eu entendo que o governo possa abrir uma discussão após essa votação preliminar na fase das emendas para que a população possa entender e opinar.
DIARINHO Já está claro como funcionará o Conselho Federativo e do Fundo de Desenvolvimento Regional?
Kelly - Nesse projeto de lei preliminar ainda não está claro.
DIARINHO - Tem riscos da arrecadação ficar concentrada em Brasília e não haver celeridade ou justiça no repasse de dinheiro aos estados ?
Kelly - Eu entendo que há um risco pela alteração na tributação. Não risco de ficarem os valores da arrecadação em Brasília, mas sim que haja uma maior destinação dos recursos federais aos estados produtivos. Porque é uma modificação. A tributação não será mais na origem, ela será no destino. Ou seja, você terá uma tributação maior sobre o consumo e, portanto, nos centros consumidores. No eixo Rio, São Paulo, Minas. Para nós de Santa Catarina há um risco, eu entendo, de diminuição da arrecadação. Porém o nosso governo do estado e a Secretaria da Fazenda já fizeram um estudo e disseram que não haverá essa perda de arrecadação por conta desse fundo, o Fundo de Compensação dos Benefícios Fiscais. Nesse ponto, Santa Catarina entende que haverá uma manutenção da arrecadação. Agora, aqui são quatro pontos de questionamentos que o governo de Santa Catarina levou e que ele divulga. Um dos primeiros pontos é sobre o Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais. Santa Catarina questiona o valor e os critérios de repartição desses recursos. Não se sabe se os R$ 166 bilhões serão suficientes e como será realizada a repartição, uma vez que a liberação dos recursos dependerá de avaliação da União.
DIARINHO - A reforma prevê tributação da renda e do patrimônio, e mais a cobrança de impostos sobre produtos de luxo como jatinhos, iates e lanchas. Como você avalia essa cobrança?
Kelly - Eu entendo que esse deve ser um dos principais focos da reforma tributária, a desoneração da produção e a oneração do consumo e da renda. Mas esse ponto ainda está um pouco obscuro.
DIARINHO - A ACII promoveu um debate sobre a reforma tributária, trouxe deputados da região, trouxe especialistas. Qual a conclusão?
Kelly - Nós criamos um comitê tributário há aproximadamente dois meses no qual nós pedimos a representação de todos os setores econômicos da cidade, que tem um impacto direto com a reforma tributária. Nós estamos realizando diversas reuniões, pelo menos reuniões quinzenais. Na última reunião, que foi ontem [quarta-feira], nós idealizamos pela ACII junto com o secretário de Portos, Robison Coelho, e também com dois deputados federais, Jorge Goetten e o [Carlos] Chiodini, que participaram de Brasília. Nós cobramos posicionamento sobre o nosso setor de comércio internacional. Eles sugeriram elaborar um documento para encaminhar aos nossos parlamentares para discussão. Nós estamos, representando a Associação Comercial, elaborando um documento elencando os principais pontos das nossas preocupações.
Raio X
NOME: Kelly Gerbiany Martarello
Natural: Curitibanos (SC)
Idade: não informada
Estado civil: divorciada
Filho: uma filha
Formação: Graduada em Direito, com especialização em Direito Tributário, Derecho Tributario pela Universidad de Buenos Aires (UBA) e Direito Aduaneiro e Comércio Exterior; pós-graduada pela Escola de Magistratura do Paraná, Extensão em Processo Tributário pelo Instituto Brasileiro de estudos tributários (IBET), em Florianópolis; pós-graduada em LLM Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Trajetória: atua como advogada desde 2003, sócia-fundadora do escritório Martarello Advogados e Associados, de Itajaí, que atua desde 2006 com Direito Aduaneiro, Empresarial e Tributário; vice-presidente de Assuntos Tributários da Associação Empresarial de Itajaí (ACII); diretora da Associação Nacional de Direito Marítimo, Aduaneiro e Portuário (ANDMAP); integrante do comitê Técnico da Revista Síntese de Direito Aduaneiro, e membro da comissão de Direito Aduaneiro na OAB/SC e OAB/SP.