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Coluna do Frei Betto

Por Coluna do Frei Betto -

O ano da quarentena


Quarentena é um vocábulo de origem bíblica. O dilúvio durou 40 dias e 40 noites. Antes de receber as Tábuas da Lei, Moisés jejuou durante 40 dias e 40 noites (Deuteronômio 9,9). Quarenta anos mais tarde, liderou a libertação dos hebreus da escravidão no Egito. A travessia dos hebreus pelo deserto – o êxodo – rumo a Canaã, teria durado 40 anos. O profeta Elias “caminhou 40 dias e 40 noites até o Monte Horeb, a montanha de Deus” (I Reis 19, 8). Jesus iniciou sua missão com um retiro de 40 dias no deserto (Marcos 1,13). Após a ressurreição, permaneceu 40 dias em companhia dos discípulos (Atos dos Apóstolos 1,3). Hoje, no ano litúrgico da Igreja Católica temos o período de Quaresma, os 40 dias que precedem o domingo de Páscoa. E estamos no ano de 2020, cujos algarismos somam 40.

Entrei em quarentena em março. E nela prossigo, com raras escapadas estritamente necessárias, e tantos cuidados que me fazem parecer um escafandrista. Não que eu sofra de hipocondria. Mas estou no grupo de risco. Aos 76 anos já me incluo na turma (qual eufemismo usar? Melhor idade? Terceira idade?) da eterna idade, já que me aproximo da junção desses dois vocábulos...

A quarentena não me pesa. Na falta de comorbidade, trago importante experiência preexistente de reclusão – os quatro anos (1969-1973) em que fui encarcerado pela ditadura militar. E, por vocação, sou afeito à solidão e à clausura.

Prisão e quarentena se assemelham em muitos pontos: isolamento físico, distância de parentes e amigos, proibições e ameaças. No cárcere, de contrair doenças infecciosas, devido às más condições de higiene; e, agora, de pegar covid-19. A diferença é que na prisão a chave da porta fica do lado de fora; agora, do lado de dentro. Sou carcereiro de mim mesmo. E o segredo para bem suportar uma e outra é não separar a cabeça do corpo, este retido e aquela virtualmente lá fora...

A quarentena, para quem não precisa sair à rua e se expor em aglomerações (ônibus, metrô etc.) para garantir o pão de cada dia, é bem mais suportável que a cadeia: alimentação saudável, livros, TV, internet, e a liberdade de determinar a própria agenda cotidiana.

Porém, cuidado! O inimigo é imperceptível e não conhece fronteiras. Pode vir na embalagem de uma mercadoria ou no envelope da correspondência. Ele mede apenas 85 nanômetros. Para se ter ideia do que isso significa, um fio de cabelo tem 100.000 nanômetros de espessura. Para detectar o novo coronavírus, um microscópio eletrônico precisa ampliá-lo ao menos 80 mil vezes.

Aproveitei a quarentena para fazer o que mais gosto: meditar, ler, praticar exercícios físicos e escrever muito. Produzi meu 69º livro, “Diário de quarentena – 90 dias em fragmentos evocativos”, que a editora Rocco fez chegar ao mercado em meados de outubro.

Quando cessará a quarentena? É a pergunta que todos fazemos. Ou quando voltaremos ao “novo normal”? Depende. Para muitos, isolamento é coisa do passado. Flexibilização geral! Sem medo de surfar nas ondas vindouras. Para outros, como eu, quando todos forem vacinados. A mera notícia da descoberta da vacina não será suficiente para decretar o “liberou geral”. Geral terá de ser a profilaxia e a imunização.

E quando surgirá a tão esperada vacina? Não me incluo entre os mais otimistas. A que levou menos tempo para ser descoberta foi a da caxumba, 4 anos. A da ebola, quase 6 anos. A da tuberculose, 13. A da catapora, 28. E a do HIV está na fila de espera há 40 anos...

O que me constrange, como ser humano, é ver tanta mobilização global para combater a covid-19 e quase nenhuma para erradicar a fome, que mata 24 mil pessoas por dia, cerca de 9 milhões por ano. Hoje, ameaça 820 milhões de pessoas e pode ultrapassar 1 bilhão até o fim do ano. Ainda bem que o Nobel da Paz foi concedido este ano ao Programa Mundial de Alimentos da ONU, o que faz soar um alerta.

Por que será que combater a fome não suscita tanta mobilização quanto o combate à pandemia? A razão denuncia a falta de ética e de solidariedade nos tempos atuais! Ao contrário da covid, a fome faz distinção de classe. Mata apenas os mais pobres. E pensar que somos mais de 7 bilhões de habitantes deste planeta que produz alimentos suficientes para 12 bilhões de bocas! Portanto, comida não falta. Falta justiça!


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