Se fomos educados na crença de que há pessoas superiores a outras, devido à cor da pele, ou nos deixamos convencer, pela publicidade, que pilotar um carro a 300 km/h é mais nobre que lutar para combater a fome, então, nossos atos serão regidos pelo racismo ou pelo culto aos ídolos do consumismo.
No Ocidente, avançamos em ciência e tecnologia e retrocedemos em valores humanos e espirituais. Atulhados em grandes cidades, trancafiados em apartamentos ou em casas cercadas de muros e prédios por todos os lados, já não contemplamos a natureza. Perdemos o silêncio do indígena que caminha pela floresta, em busca de caça, e distingue o canto dos pássaros. Ou do viajante que, em seu cavalo ou sua carroça, se deixa inebriar pela variedade de tons das encostas e plantações.
Vemos sem olhar, escutamos sem ouvir, falamos sem medir o peso das palavras. A vida, como mistério, declina em nossa falta de sensibilidade. O pragmatismo nos induz, célere, ao rol dos ansiosos, à antessala dos infartados, à mesa dos obesos que engolem sem mastigar.
A tradição judaica ensina-nos um conjunto de deveres – as mitzuot – que ajudam a impregnar-nos da presença divina. “Nós nos exercitamos em conservar nosso sentimento de admiração, recitando uma oração antes de tomar o alimento”, escreve A.J. Heshel. “Cada vez que bebemos um copo d’água recordamos o eterno mistério da Criação. (...) Quando desejamos comer pão ou fruta, ou, então, gozar de agradável fragrância ou de um cálice de vinho, ao saborear, pela primeira vez, a fruta da estação, ao contemplar o arco-íris ou o oceano, ao observar as árvores em flor, ao nos encontrarmos com uma pessoa douta no conhecimento da Torá ou na cultura leiga, ao receber notícias boas ou más, foi-nos ensinado invocar Seu grande nome e nossa consciência dele” (Dio alla ricerca dell’uomo, Turim, 1969).
Na liturgia cristã, os gestos são lentos para que se permita aprofundar o espírito: o vinho derramado no cálice, as ondulações suaves do canto gregoriano, os joelhos dobrados em sinal de adoração ao Senhor. Isso vale para o conjunto da vida. Na relação com o alimento, usufrui melhor quem faz, da refeição, celebração. Sem pressa ou preocupações. O que importa não é o prazer, é a felicidade.
Sentir os atos mais vulgares como aventura espiritual é um desafio proposto pelas religiões orientais. Um ocidental enche de água o copo sem ouvir o murmúrio do líquido, enquanto a cabeça permanece distante daquele momento. Um oriental, instruído na sabedoria milenar, sabe ser aqui-e-agora: copo, água, sede, gesto e atenção formam um todo e favorecem a harmonia interior.
O sábio não corre atrás do tempo nem se deixa arrastar pelo ritmo do relógio. Ele é senhor do tempo. Em suas atividades, nunca submerge, pois se comporta “como a cortiça na água”, como sugere São João da Cruz. Ele aprendeu que só o Absoluto e suas expressões – as pessoas e a natureza - valem a pena. Tudo mais é relativo e, como tal, não merece tanta importância.
Frei Betto é escritor, autor de “Minha avó e seus mistérios” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org