tradição do mal
Farra persiste após quaresma em SC
Polícia identificou quadrilha que organizou os eventos ilegais; multa e pena de prisão não conseguiram extinguir a prática
Franciele Marcon [fran@diarinho.com.br]
Casos de farra do boi têm persistido em Santa Catarina mesmo após o fim da quaresma, período em que prática criminosa de maus tratos contra os animais costuma ocorrer no litoral catarinense. O último registro foi na manhã de domingo, no bairro Canto dos Ganchos, em Governador Celso Ramos, quando um boi judiado por farristas foi capturado bastante machucado após ter sido torturado por horas.
Segundo o relatório da operação Quaresma da polícia Militar, embora a prática persista, o número de ocorrências de maus tratos contra os animais caiu nesse ano. Até o dia 19 de abril, foram seis casos registrados pela corporação. Em 2020, no mesmo período, tinham sido 34 ocorrências.
A operação feita desde fevereiro visou o cumprimento da lei 9605/95, de crimes ambientais, que enquadra no artigo 32 a prática da farra do boi, tipificando como crime atos de abuso, maus-tratos e mutilação de animais silvestres, domésticos, nativos ou exóticos. A punição é prisão de três meses a um ano, além de multa.
Para o sub-comandante-geral da PMSC, coronel Marcelo Pontes, a operação teve sucesso devido a diversos fatores. “O primeiro lugar foi graças ao trabalho que a PMSC vem realizando durante anos, com inteligência, identificando focos de organização e evitando com antecedência a realização de qualquer evento de maus tratos aos animais”, afirmou.
Segundo Pontes, a multa de alto valor (R$ 10 mil) para os praticantes identificados e a conscientização de crianças e adolescentes, que levam para suas famílias uma mudança cultural na forma de comemorar a Quaresma, sem maltratar animais, também ajudaram. Além disso, o coronel destacou que a pandemia de covid-19 ainda contribuiu pra evitar maior aglomeração em determinadas regiões.
A operação cobriu principalmente às regiões com cidades de cultura açoriana, em trabalho integrado com órgãos de fiscalização estaduais e municipais. Denúncias de novos casos da prática da farra podem ser feitas pelo aplicativo PMSC Cidadão ou pela central 190, da polícia Militar.
Polícia identificou uma quadrilha
Investigação da polícia Civil identificou uma quadrilha que fazia a organização de farras do boi em Santa Catarina. Oito pessoas foram indiciadas no inquérito já encaminhado ao ministério Público. No grupo estão financiadores, produtores que criavam os animais exclusivamente para a prática e farristas. Eles vão responder por maus tratos aos animais e associação criminosa, além de receptação e adulteração de placa de veículos roubados, usados nas farras.
O inquérito é da delegacia de Bombinhas, mas apontou atuação do grupo também em casos de farras do boi registradas em outras cidades da região, como Porto Belo, Tijucas e Governador Celso Ramos, desde o ano passado. Caminhões foram apreendidos e animais que seriam usados no crime foram resgatados.
Conforme a investigação, em Tijucas foi identificado o responsável pelo fornecimento dos animais aos farristas. Em São José, tinha o homem que fazia o transporte dos bois até os locais das farras. O organizador dos eventos era de Bombinhas. Os outros envolvidos financiavam ou participam da prática nas ruas.
Segundo a polícia Civil, o crime prevê multa de até R$ 10 mil. O envolvimento do grupo com os casos registrados em Bombinhas nesse ano ainda seria investigado. Se for confirmada a reincidência dos suspeitos, eles poderão ter a prisão preventiva solicitada. Um dos casos que gerou mais repercussão foi em 27 de março, quando o boi foi perseguido por um grupo de 50 pessoas até invadir uma pousada e cair cansado numa piscina.
Maltratar o animal é estranho à brincadeira, analisa historiador
O historiador Edison D´Ávila, de Itajaí, comenta que a farra do boi é uma tradição que está enraizada no litoral catarinense, fruto da colonização portuguesa a partir do século 18. Na época, ele lembra que o costume tinha um caráter comunitário e ligado às celebrações da quaresma.
Com a urbanização das comunidades litorâneas, no entanto, Edison observa que a prática se degradou. “Essa festa era uma brincadeira despretensiosa. Em hipótese alguma havia violência contra os animais”, considera. Nas últimas décadas, o professor destaca que houve ainda maior distanciamento do propósito original.
“Entrou um elemento estranho à brincadeira, que foi começar a maltratar e ferir o animal”, lembra. Edison observa que, devido à ocupação urbana, os animais também não têm espaço livre pra circular como antigamente, vindo a invadir casas, comércios e se perderem nas ruas, onde acabam se machucando e sendo alvo de violência.
Para o professor, a brincadeira ficou inadequada, tanto pela questão dos maus tratos como pelas mudanças no espaço urbano. “Hoje, com todas as preocupações com o zelo e os cuidados aos animais, não tem mais sentido”, destaca.
Há pelo menos 20 anos a prática vem sendo condenada por grupos defensores dos animais. Edison considera que a tradição está fadada ao fracasso mas analisa que ainda vai levar algum tempo pra que as pessoas se conscientizem. “Essa prática ainda sobrevive devido à resistência de algumas pessoas em não reconhecer a inadequação aos tempos atuais”, completa.
Boi sempre leva a pior
A companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (Cidasc) é responsável pelo recolhimento e abate dos animais usados na farra do boi. O órgão informou que não vai se manifestar sobre a prática, por se tratar de crime e caso de polícia, e não passou dados sobre os atendimentos nesse ano.
Segundo a Cidasc, o sacrifício dos animais atende o que determina a lei de defesa sanitária. Isso porque, conforme o órgão, animais sem brincos oficiais de identificação individual são considerados clandestinos, sem procedência de origem.
Com a falta de registro, o boi é considerado uma ameaça à saúde do rebanho bovino e à população. “Sem saber a origem do gado, o risco é iminente e o abate é obrigatório”, informa a Cidasc.
A farra do boi foi proibida em Santa Catarina por acórdão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 1997, que considerou a prática cruel e criminosa. A lei de crimes ambientais prevê prisão e multa aos envolvidos, com aumento da pena no caso de morte do animal.