Colunas


Coluna do Frei Betto

Por Coluna do Frei Betto -

O limite da escrita e os místicos


O limite da escrita e os místicos

A escrita é uma forma de tentar organizar o caos interior. Por isso, todo artista é clone de Deus. A escrita é terapêutica, libertadora. Hélio Pellegrino, psicanalista, atribuía a minha sanidade mental no decorrer de meus anos de prisão ao fato de eu ter literalizado a vida de cadeia. O meu mundo é recriado quando lanço mão de vocábulos e regras sintáticas para dar forma e expressão ao que penso e sinto. Assim, transubstancio a realidade, projeto-me em algo que, fora de mim, não sou eu e, no entanto, traduz o meu perfil interior de um modo que eu jamais conseguiria pela simples fala.

A escrita constitui uma forma de oração, como bem sabia o salmista. A experiência de Deus antecede e ultrapassa a escrita. No entanto, o pouco que dela se sabe é por meio da escrita; raras vezes por experiência pessoal. Grandes místicos, como Buda, Jesus e Maomé, nada escreveram. O que sabemos deles e de seus ensinamentos é graças a quem teve o trabalho de redigir.

Ainda que o próprio místico possa fazê-lo, como são exemplos Plotino, Mestre Eckhart e Charles de Foucauld, há um momento em que a experiência de Deus ultrapassa os limites da palavra. É inefável. Como diz Adélia Prado, “Se um dia puder, nem escrevo um livro” (Círculo). “Não me importa a palavra, esta corriqueira, / Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, / A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda / foi inventada para ser calada. / Em momentos de graça, infrequentíssimos, / se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. / Puro susto e terror.” (Antes do nome)

João da Cruz, patrono dos poetas espanhóis, deixou três de seus quatro livros inacabados. Tomás de Aquino considerou, após seu êxtase em Nápoles, que toda a sua obra não passava de “palha”. E não mais escreveu. Em Antes do nome, Adélia Prado frisa: “Quem entender a linguagem entende Deus / cujo Filho é Verbo. Morre quem entender”.

Há nesse enfoque adeliano uma empatia com o poema Ash-Wednesday (Quarta-feira de Cinzas), de T.S. Eliot, escrito em 1930, três anos após a conversão do poeta ao cristianismo. Na quinta parte, Eliot canta que “a palavra perdida se perdeu”, “a usada se gastou”, mas perdura no “Verbo sem palavra, o Verbo. Nas entranhas do mundo.”

A poesia mística, como em João da Cruz e Teresa de Ávila, é feita de gemidos, entrelinhas, hipotaxes e metáforas, como a linguagem dos amantes. “Que faço agora que vos descubro em silêncio, / mas, dentro de mim, em meus olhos, / vertiginosa doçura?”, pergunta Adélia Prado em A sagrada face. Nos passos da “noite escura” de João da Cruz, a poeta reverbera: “O centro da luz é escuro / do negrume de Deus, / é sombra espessa de dia, / de noite tudo reluz” (A seduzida). É o eco dos apaixonados versos do frade carmelita espanhol: “Ó noite que juntaste / Amado com amada / amada já no Amado transformada.”

Sem ceder ao proselitismo religioso que procura rechear a literatura de utilitarismo catequético, empobrecendo-a, Adélia Prado situa-se na vertente de Jorge de Lima e Murilo Mendes, Juana de la Cruz e Ernesto Cardenal, que não deixam o religioso que os habita sonegar o artista. Neles, a ética ganha força na expressão estética: “Sinto necessidade de bradar a Deus. / Ele está escondido, mas responde curto: / ‘brim coringa não encolhe’. (…) ‘Brim coringa não encolhe?’ / Meu coração também não” (O poder da oração).

Sua religiosidade não se ancora no cartesianismo teólogico, pois “Estão equivocados os teólogos / quando descrevem Deus em seus tratados” (A cicatriz). E insiste: “Deus não existe assim pensável” (Não blasfemo). Sua imagem divina, jonathanianamente amorosa, brota da vivência teologal, da oração, da contemplação que dispensa imagens e palavras; não é doutrinária, é experimental, como quem ignora a composição química da água mas se deixa lavar com a alegria de menino em cachoeira: “Há mulheres no meu grupo que rezam sem alegria / e de cabo a rabo recitam o livro todo, / incluindo imprimatur, edicões, prefácio, / endereço para comunicar as graças alcançadas. / Eu só quero dizer: Ó Beleza, adoro-Vos! / Treme meu corpo todo ao Vosso olhar” (Biografia do poeta). Sua espiritualidade é telúrica, apaixonada, como o “faça-se em mim a Vossa vontade” de Maria: “Não compreendo nada. Só Vos desejo e meu desejo é como se eu miasse por Vós” (À soleira).

Poeta em estado de gravidez permanente, seu canto encerra utopias. A mais definitiva e misteriosa de todas, o Reino de Deus, a redenção de toda essa Criação que, na expressão de Paulo, apóstolo, geme em dores de parto. “…o que sob o céu mover e andar / vai seguir e louvar. / O abano de um rabo, um miado, / u’a mão levantada, louvarão” (Um salmo). Prenhe de fé, Adélia não crê, ela sabe: “Levantaremos como deuses, / com a beleza das coisas que nunca pecaram, / como árvores, como pedras, / exatos e dignos de amor” (O dia da ira). Epifânica, sua poesia é de quem identifica Senhor e amor, e sabe-se acolhida pela compaixão divina: “Ó Deus, cujo Reino é um festim, / a mesa dissoluta me seduz, / tem piedade de mim” (A boca). Ela proclama que, no céu, “os militantes / os padecentes / os triunfantes / seremos só amantes.”


Comentários:

Deixe um comentário:

Somente usuários cadastrados podem postar comentários.

Para fazer seu cadastro, clique aqui.

Se você já é cadastrado, faça login para comentar.

Leia mais

Coluna do Frei Betto

Feliz Ano Novo

Coluna do Frei Betto

Frei Cláudio Von Balen

Coluna do Frei Betto

Império do medo

Coluna do Frei Betto

Adeus às cartas

Coluna do Frei Betto

Rituais para a felicidade

Coluna do Frei Betto

Feijão, fuzil e Araçatuba

Coluna do Frei Betto

Roberto Romano (1946-2021)

Coluna do Frei Betto

Democracia cultural

Coluna do Frei Betto

Cadê a cultura política?

Coluna do Frei Betto

O banqueiro e o sem-terra

Coluna do Frei Betto

Todos às ruas

Coluna do Frei Betto

Tem futuro esse futuro?

Coluna do Frei Betto

Resta-me humanidade?

Coluna do Frei Betto

Sansão merece figurar na Bíblia!

Coluna do Frei Betto

Pandemia da fome

Coluna do Frei Betto

Demônios fogem do inferno

Coluna do Frei Betto

Pátrias armadas

Coluna do Frei Betto

A reeleição de Bolsonaro

Coluna do Frei Betto

Meu lado mulher

Coluna do Frei Betto

Quem manda no Brasil



Blogs

Blog da Ale Francoise

Sintomas de Dengue hemorrágica

Blog da Jackie

Cafezinho na Brava

Blog do JC

David é o novo secretário de Educação de BC

A bordo do esporte

Fórmula E celebra Dia da Terra

Blog do Ton

Amitti Móveis inaugura loja em Balneário Camboriú

Gente & Notícia

Warung reabre famoso pistão, destruído por incêndio, com Vintage Culture em março

Blog Doutor Multas

Como parcelar o IPVA de forma rápida e segura

Blog Clique Diário

Pirâmides Sagradas - Grão Pará SC I

Bastidores

Grupo Risco circula repertório pelo interior do Estado



Entrevistão

Juliana Pavan

"Ter o sobrenome Pavan traz uma responsabilidade muito grande”

Entrevistão Ana Paula Lima

"O presidente Lula vem quando atracar o primeiro navio no porto”

Carlos Chiodini

"Independentemente de governo, de ideologia política, nós temos que colocar o porto para funcionar”

Osmar Teixeira

"A gestão está paralisada. O cenário de Itajaí é grave. Desde a paralisação do Porto até a folha sulfite que falta na unidade de ensino”

TV DIARINHO

A Dika, uma pastora belga-malinois, é a nova “funcionária” da Receita Federal de Navegantes. A doguinha ...




Especiais

NA ESTRADA

Melhor hotel do mundo fica em Gramado e vai abrir, também, em Balneário Camboriú

NA ESTRADA COM O DIARINHO

6 lugares imperdíveis para comprinhas, comida boa e diversão em Miami

Elcio Kuhnen

"Camboriú vive uma nova realidade"

140 anos

Cinco curiosidades sobre Camboriú

CAMBORIÚ

R$ 300 milhões vão garantir a criação de sistema de esgoto inédito 



Hoje nas bancas


Folheie o jornal aqui ❯








MAILING LIST

Cadastre-se aqui para receber notícias do DIARINHO por e-mail

Jornal Diarinho© 2024 - Todos os direitos reservados.
Mantido por Hoje.App Marketing e Inovação